sábado, 30 de maio de 2009

Dias de Festa

Ontem o dia vestia-se de comemoração.
Preparei a minha melhor saia de padrão africano, calcei as sandálias de cunha bem grande, vermelhas e não as encarnadas que guardo para ocasiões mais formais, e coloquei nas orelhas os brincos dourados enormes que acompanham na perfeição o movimento das ancas em modo festa. Dei volume aos cabelos num gesto enérgico de baixar e levantar a cabeça, até ficar tonta, e domei apenas os caracóis mais rebeldes em zonas estratégicas. Meti-me no bólide com a minha crew, levando comigo na mala um tupperware para trazer uns rissóis, e rumei, na expectativa de uma festa em b.leza, à margem de cá. Enquanto o carro percorria os viadutos e as auto-estradas dos subúrbios, baixei o vidro para que o som alto das músicas mixadas se propagasse pela tarde quente de Primavera, em tom de alegre desafio. Passei indiferente pelos fóruns e centros comerciais, onde rapazes de ténis e boné da Puma, azul-bebé ou rosa pastel, conforme o grau de excentricidade, passeavam de mão dada com as namoradas de t-shirt curta a mostrar a tatuagem tribal, para orgulho do respectivo e indignação das mães, avós e toda uma geração de mulheres de família. Parei num parque de estacionamento quase deserto, entre nada e coisa alguma...Esperei com o resto do party people pelo pessoal dos subwoofers e do chão rebaixado que chegou a meio de uma conversa sobre gostos duvidosos e unhas de gel. A tarde já cedia à noite quando fui guiada por um bairro de casinhas baixas, carrinhas familiares e courts de ténis em que as paredes limpas não mostravam qualquer sinal de tags ou grafittis ilegais. Quando cheguei à festa, o aniversariante recebeu-me de sorriso rasgado e camisa Lacoste. Prossegui com a noite, alegre e educada, sem palavrões ou sons de balas perdidas, entre sorrisos, gestos cordiais e desejos de mais um ano com saudinha, alegria e tudo de bom se deus quiser. Comi saladas temperadas com vinagre inglês, petisquei cogumelos italianos, e cantarolei em conjunto músicas dos sempre loiros (bom, uma era morena) ABBA.
A noite ia a meio, quando descontraída, entre a primeira e a segunda caipirinha by bimby, pensei para comigo que, decididamente, aquela não era a margem sul que tão bem conhecia...

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Hoje

Acordo invariavelmente despenteada e mal disposta, pés descalços no soalho gasto e dirijo-me desajeitadamente e com o passo pouco certo, até à cozinha. Mato a sede com uma caneca cheia de água, que bebo quase num golo. Espreito o dia pela janela da marquise e parece-me que ainda é cedo, volto para a cama. Não consigo dormir, mas prefiro ficar quieta no meu quarto às escuras. Permaneço assim, mais de uma hora. Começo ouvir o rebuliço do acordar da cidade. Lá fora nasce o dia, que promete ser quente e abafado. E aqui dentro mantem-se a incerteza e cultiva-se o desassossego do que me espera quando sair porta fora.






sexta-feira, 22 de maio de 2009

Queques de Laranja

Vou sentir saudades daquele restaurante na Lapa. Tão chique que sou, ou era, ou fui e vou deixar de o ser, agora que acabaram os almoços com os Noronha, os de Andrade, os Breyner e os Lobo Antunes, lado a lado como que almoça com um qualquer Silva.
A sangria branca e os croquetes da despedida, partilhados com as companheiras dos dias duros de trabalho árduo, souberam-me agridoce. O queque feito de nuvens de laranja espera, na cozinha, que o devore. Estou sentimentalista. Vão-me fazer falta as Carlotas, as Beneditas, as Pipas e os Fredericos de cabelo desgrenhado que selvagens corriam pelo restaurante gritando exigências às tias que são só amigas das mães. Vão-me fazer falta as incoerências da Dona Rosa Loira que ora servia bem ora servia mal, os mini-pratos de iguarias gourmet acompanhados de copos de água. A ausência, à hora de almoço, de senhoras finas de capacetes brancos, da rudeza chique da fala de Cascais e de vedetas de sexualidade alternativa vão dificultar imenso as conversas da tarde, tá a ver? Já para não falar da incerteza do amanhã e do receio que, logo agora que aprendi a prolongar o final de cada frase e passei a tratar as minhas amigas por você, me espere um regresso à negra fase dos tascos e do bife com ovo a cavalo. Vai ser difícil passar sem aquele restaurante na Lapa, agora que acabaram os trabalhos, os testes e as aulas, e o futuro aproxima-se a passos largos sem que se justifique tal urgência. Mas o que vai ser mais difícil nisto tudo é saber que no fim de um esforço imenso, não nos espera, paciente, prometedor e fofo, um bolo numa caixa.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O Tipo


São dez e doze. Dormir sete horas é imprescindível, sobretudo se amanhã quero acordar cedo. Bem cedo para ouvir a professora de voz monocórdica anunciar os grupos e os seus trabalhos. Bem cedo para ouvir as argumentações mais ou menos sustentadas, reparar nos tiques nervosos, no esbracejar dos mais extrovertidos e com sorte ver o tipo do norte que veio para o litoral de calças justas e atitude de macho latino. Com sorte vejo esse tipo apresentar o trabalho dele, nas suas calças justas. Com a sua atitude de macho, latino. Não me deixo enganar pelo jeito seguro com que enverga as calças justas, a atitude essa, me encanta, mas não lha acredito. É um punk, um rufia, um quantos-são-venham-eles, cujo à vontade não me convence. Tímido, tímido demais para se assumir como um. Não me engana. Não é macho e de latino tem pouco. O tipo que quer que a região passe a país e de país passe a planeta. É um extremista é o que é. Um extremista que não me convence. Não gosto por aí além de extremistas, sobretudo se usam calças justas. É um rufia é o que é, aparentemente seguro e macho com as suas patilhas bem grandes. Como se a masculinidade de um homem se medisse pelas patilhas. É extremista o tipo das calças justas, extremista até nas patilhas. Não gosto de patilhas grandes. E também não gosto que o tipo extremista das calças justas e das patilhas grandes passe e finja que não vê, que evite grandes conversas, no seu sotaque de macho, latino. Mas nisto já são dez e meia e tenho de me ir deitar porque amanhã tenho de acordar cedo. Bem cedo, para ouvir a professora de voz monocórdica anunciar o grupo do Tipo que veio do norte para o litoral nas suas sugestivas calças justas e com o seu ar diferente, de macho. Bem cedo, para no meu jeito de quem não se importa e olha para o lado como quem não vê, assistir numa distracção encenada à apresentação daquele Tipo…que num masoquismo infantil, gostava que me deixasse deliciosamente arruinada.




terça-feira, 12 de maio de 2009

Gregor Samsa


Sábado passado fui ao teatro com uma intenção perigosa…A de deixar-me surpreender pela adaptação à arte dos palcos de um dos meus livros preferidos. Quando entrei na sala era de facto surpresa o que me aguardava. No meio do palco, um homem, vestido de preto, permanecia imóvel deitado dentro daquilo que parecia uma cápsula espacial. Depois de muito procurar, questionar e pedir por favor podia deixar-me passar, sentei-me, finalmente, na cadeira que me pertencia. À minha volta outras pessoas, igualmente desprevenidas, louvavam o feito desse homem de preto que teimava em permanecer quieto, e comentavam “e se lhe dá vontade de coçar o nariz?!”. Não deu. A peça foi chata, com direito a uma ou outra gargalhada sincera e muitos bocejos. Só Gregor, o escaravelho charmoso de jeito afectado, dava algum alento aquela tentativa de transformar um livro genial naquilo que fazia lembrar um filme de anime japonesa. Talvez corra o risco de ser injusta (que importa?) e a peça não seja assim tão má, mas não gostei que brincassem de forma descuidada com um livro que me foi tão querido… companhia de manhãs de hora de ponta, quando ainda marcava presença nos requisitados catamarans, sentada entre trolhas, estudantes, mulheres-a-dias e outros profissionais de índole menos comum, parecendo muitos deles também vítimas de alguma espécie de metamorfose.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Cultura

Passar a tarde rodeada de livros é bom. Faz-nos sentir mais cultos e informados. No tempo em que deveria estar a estudar aprendi uma série de títulos interessantes que me permitirão fazer um brilharete em conversas mais estimulantes a nível do intelecto. Só um exemplo, “oh claro, já dizia Aristóteles no seu Política…”, e a partir daí é sucesso garantido, chegando ao ponto de nos podermos dar ao luxo de acabar a falar sobre a novela das cinco que já ninguém tira da cabeça que somos pessoas extremamente cultas. Passar o dia rodeada de livros é tão estimulante que me levou a tornar no número 782 da biblioteca municipal, e só para começar em beleza, a trazer dois livros de pedigree inquestionável. Não importa que mal tenha tempo para dormir porque o facto de andar com o Inferno de Dante e um livro do João Ferreira do Amaral sobre economia, entre lenços usados e bilhetes de metro, por si só já vai dar uma excelente imagem quando tiver de despejar a mala para encontrar a carteira. Além disso toda a gente sabe que é assim que nascem os grandes romances… “Anda a ler esse livro? Curioso, eu também” dirá o rapaz giro semi-barbudo de óculos de massa enquanto me ajuda a arrumar as coisas. Na pior das hipóteses também ele passou uma tarde na biblioteca…a olhar com interesse as prateleiras quando deveria estar empenhado a calcular preços de acções.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Não me importo muito quando fazes esse teu ar de troça e me lanças um olhar de esguelha. Com esses olhos lindos. Também não me importo quando te ris de mim. É como se te risses para mim. Não me importo quando chegas tarde e eu a desesperar por ti. Tal como não me importo quando não respondes às mensagens e aos telefonemas consecutivos. Quando desapareces sem deixar rasto e reapareces com esse ar cândido e natural. Na realidade eu já nem me importo contigo.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Quinta às dez

Escrever sobre um homem é dar-lhe demasiada importância. Por isso escrevo sobre dois.
Muito me agrada aquele rapazinho da aula das dez de quinta-feira, trata-lo por rapazinho é ironia minha. É Homem até à última casa e eu gosto é de Homens, bonitos, ‘tá claro… Se bem que há por aí um miúdo, que um dia certamente me fará perder o juízo, mas por enquanto apenas me faz lançar suspiros profundos a meio da manhã com o diário económico na mão, em frente a uma meia de leite mal tirada, no bar apinhado da biblioteca. E também serve de inspiração, às vezes… Aiiii! Não, não estou nas nuvens, nem a ouvir passarinhos a chilrear ou qualquer coisa que o valha. Gosto de dar uma aparente importância ao que na realidade não é importante ou que até nem é real. É, mas é verdade eu interesso-me por estes dois. E por mais uns quantos.

sábado, 2 de maio de 2009

O sonho português


E o bom que é ouvir isto na rádio de braço de fora da porta do carro como quem pede bronze à pedreiro? Na minha opinião é só comparável às primeiras sardinhas do ano.

Lisbon Sonata

Enquanto sentada a uma das mesas do cabaret olhava embevecida aquele tipo de barba à António Variações e cabelo desleixado, e o via cantar à meia luz naquelas calcinhas justas cor salmão com a viola à tiracolo, pensava para mim (para além do óbvio)...Foda-se, são estas pequenas coisas que dão sentido à vida...É verdade que basta uma ou duas cervejas para que me assalte o lado brejeiro e filósofo, aquele meu lado, que gosto de acreditar charmoso, de intelectual de taberna. E é vulgar que pense que de vez em quando há noites assim, dias destes, parecidos com anúncios da super-bock. Filmados de longe e na melhor perspectiva...os passeios pelas ruas entre as alfândegas e os edificíos cheios de luz. O nosso melhor lado, com os cabelos ao vento e os óculos de sol, em primeiro plano, com os contentores coloridos desfocados em pano de fundo. Os sorrisos de gozo e cumplicidade com música escolhida a dedo e os olhares timidamente sugestivos e em câmara lenta, trocados com gente que nos faz pensar em prédios de tectos altos e moleskines. Dias que acabam em noites de gente boémia e que ocasionalmente lembramos como se de um filme se tratasse. Por vezes há noites assim, dias destes, em que tudo parece ganhar (outro) sentido.