domingo, 29 de novembro de 2009

Contratempo

Não são meus os meus dias. Delego-os a outrem, passo-os para outras mãos como se de um jogo de batata quente se tratasse. Deixo os meus dias a gente indiferente, a quem por não serem deles os meus dias, não lhes queimam as mãos. Negligentes, lá vão esses a quem entrego os meus dias, organizando hora a hora, minuto a segundo, o tempo que devia ser da minha total responsabilidade. Deixo-os brincar assim, sem vergonha nem preocupação com o meu precioso tempo. Professores de condução encaixam-me entre duas horas apertadas, esquecidas, suadas pela urgência de pontualidade, condutores de transportes públicos gastam-me os minutos, pela falta dela, professores de matérias pesadas que nada me dizem, obrigam-me a que os oiça, por tempos que parecem infinitos. E até tu, irresponsável e inconsequente, brincas com o meu tempo, deixando-me impacientemente à espera. E mesmo repetindo para mim que não há tempo a perder, que o tempo urge, que o tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem, não consigo recuperar o que é meu de direito. Ou talvez nem queira. Afinal, só tu e eu sabemos como às vezes é tão bom, simplesmente...deixar andar.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Que tal...uma banheira de espuma

Hoje enchi a banheira de sais de banho e água quente e pus-me lá dentro. Resolvi aproveitar devidamente esta pausa forçada só concedida aos mais afoitos que andam à chuva de maga curta e lembro-me de na altura ter pensado que até um tal de Gene Kelly tinha um chapéu na cabeça quando foi a vez dele de enfrentar as intempéries. Deixei-me estar naquele dolce fare niente até os dedos dos pés e das mãos, mais houvessem, enrugarem que nem os de uma centenária e por ali fiquei a ver bolinhas de sabão flutuarem no ar espesso da casa de banho. Pensei muito em quase nada, mais um tanto em coisa alguma enquanto o rádio debitava canções de outros tempos a fazer lembrar ora geladarias americanas azul pastel ora clubes nocturnos fumarentos cheios de vozes negras e profundas, daquelas que hoje com relativo sucesso se vão imitando. Considerei se te teria realmente debaixo da minha pele enquanto desafinada tentava em dó menor esfregar a parte central das costas. Desisti e abandonei-me de novo às bolhas de sabão pensando em como me daria jeito uma mão extra. Dei por mim a tentar lembrar-me, com duas rodelas de abacaxi nos olhos, se havia uma grande probabilidade de ter deixado a porta mal fechada e só muito a custo consegui afastar as insistentes imagens daquela miúda gritante do filme do Hitchcok. Voltei por momentos à contemplação do nada. Quando por fim saí da banheira já tinha lido dois livros, decorado a letra de três canções do Stevie Wonder e pensado de forma critica na actual conjuntura económica. Descontraída olhei-me ao espelho e pensei para comigo em como realmente tinha valido a pena tirar um dia de folga.
Ou isso ou passei o dia inteiro a fazer zapping…assim de repente não me recordo, foi uma das duas.

domingo, 15 de novembro de 2009

Downtown Benfica

Havia um plano, mais ou menos delineado… o sitio e o dia estavam marcados. Comprámos roupa nova, e desprendemo-nos da ideia de conforto com tal naturalidade que nem uma unha encravada constituiu problema ao uso de uns sapatos altos acabados de sair da loja. Tudo em nome da noite desejada. Desdenhámos as competências da nossa companhia, depois de se recusarem a vir buscar-nos. Mas lá fomos contrariadas apanhar o autocarro da carris, sujeitas a adversidades tais como a humidade do ar e as pedras irregulares da calçada. Mas tudo bem… chegámos ao destino. E com a atitude de quem pensa jantar esparguete com bacon tocámos insistentemente à campainha.
A mesa está posta… e não há tachos de alumínio, nem esparguete nem bacon. Surpreendentemente, os copos são de pé alto, há velas de cheiro, há uma travessa com pedaços de fruta, outra com carne, vários molhos e todos os utensílios do fondue harmoniosamente dispostos em cima de uma pequena mesa redonda. Brindámos a clichés ao som de blues… bebemos vinho do porto frutado e pegámos com classe nos copos... foi em Benfica mas podia ter sido num qualquer apartamento de tecto alto em Manhattan.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Tomás (nome fictício)

Por ti trocava as minhas convicções por vantagens a curto prazo.
Esticava os cabelos de caracóis anárquicos em suaves madeixas loiras, que puxaria para trás a cada dois segundos. Por ti, mudava o nome para Carlota, adicionava um Joaquina, mais um, dois, quem sabe até três nomes estrangeiros. E fazia com que me tratassem pelo diminutivo mais o nome mais sugestivo e importante. Por ti, ao teu lado, trocava o riso alarve pelo sorriso aberto, branco, branqueado, brilhante, na minha pele morena de solário. E substituía o subtil pelo sugestivo, trocava-te as voltas, entre insinuações e disfarces, num flirt manejado com arte. Por ti conduzia um smart. Preto, dois lugares, com o labrador pura raça no teu colo, mais a prancha no tejadilho, e prometo, ia a todos os teus treinos de râguebi. Por ti…aos teus pais, escondia o tolo orgulho de crescer nos subúrbios, Cascais! mentiria eu, em tom afectado, quando em coro me perguntassem onde nasci. Por ti, abdicava da cerveja, gelada, e só bebia vodka limão. Por ti punha de lado a ridícula necessidade de ser diferente e aderia ao padrão. Menina boa, rica família, um cavalo. Por ti, e por esse teu jeito desajeitado e preguiçoso de ser, criava uma conta no Facebook, deixava de lado os All-star gastos e só calçava Timberland, Merrel e uns flip-flop bem altos no Verão.
Por ti, fazia isto tudo, ou talvez…não.